Constância Nery - A emoção de sonhar a realidade
Embora eu acredite que o termo “naïf”, ou a denominação “pintura naïve”, mereça primeiro uma reflexão aprofundada sobre a sua pertinência ou não, num texto breve como este entenderemos “naïf” na sua acepção primeira, isto é, a que vem do latim nativus, natural, espontâneo.
Pois Constância Nery é uma pintora espontânea e não ingênua, como a tradução da palavra naïf nos faz entender. Ela passou sua infância no campo, em contato com fazendas de café, de algodão, de arroz e com as festas e folguedos populares, razão pela qual guarda um imenso carinho e admiração pelo homem simples, rude, o camponês trabalhador que nunca perde sua dignidade. Freqüentou Universidades, vive e trabalha em grandes centros urbanos.
Há ainda uma outra razão que une Constância à pintura naïve; sua obra é resultado principalmente de sua emoção, mesmo que hoje ela domine a técnica pictórica, ela ainda conserva a espontaneidade com relação à forma e a cor que são sentidas emocionalmente e não estão à procura do real dos objetos; sua pintura nasce do coração, ela representa o que Wilhelm Uhde chamou de “os pintores do coração sagrado”. Sua pintura se baseia sempre numa invenção plástica constante, buscando na sua imaginação a justeza cromática e formal que produz um frescor particular nos seus quadros.
Para o historiador da arte, José Pierre, “o artista naïf quer mostrar a verdadeira face das coisas” e por esta razão ele recusa a arte acadêmica que artificializou demais o objeto, mas também não se pretende artista de vanguarda, ele se mantém sempre como “um primitivo de épocas futuras”, pois foi assim que a teoria da “necessidade interior” de Kandinsky, fundadora da arte moderna, nasceu também da redescoberta dos valores primitivos e originais que pertencem ao universo popular.
Constância Nery busca o poético, ela quer encontrar um mundo que está atrás do nosso mundo; ela questiona a verdadeira natureza da nossa realidade (J. L. Borges) ou mesmo as nossas estranhas realidades (Garcia Márquez). Metaforicamente como um ser transplantado (ela viveu o campo e veio viver na cidade), com gestos líricos e míticos, faz alusão as suas raízes, as suas memórias de infância e dialoga com o seu passado dentro de um universo pictórico ao mesmo tempo mágico.
Seus enquadramentos também são deliberadamente organizados para valorizar os efeitos emocionais, os personagens são centralizados, seus gestos são tradicionais e acentuam o valor da ação, mesmo quando as figuras que representam movimento são estáticas, como que fixadas, tomadas num momento, que se tornam estereótipos repetidos no mesmo ou em outros quadros. Mas a ausência de rigor na estrutura do espaço torna seu realismo original – notemos nesta exposição, a grande diagonal do quadro Arrozal Doce, os planos de Amarrando a Cana ou ainda o uso que ela faz dos planos e das cores em Banana Ouro – quando a sua realidade é inventada.

Os cabelos esvoaçantes das garotas nos folguedos infantis ou a sinuosidade dos rios e dos caminhos são pura emoção. O trabalho do artista naïf é de transformar o valor estético em sentimento, em valor ético, quer atingir o espectador pela sua emoção, a mesma emoção que tomou o artista no momento da criação da obra.
Como artista latino-americana, Constância Nery é basicamente visceral; a emoção é o meio de que ela dispõe para fazer com que sua imaginação e sua memória a dominem, e assim, na procura da representação objetiva do objeto, ela pode transformar o real pelo sonho ou pela imaginação.
Fernando A. F. Bini
Professor de História, de História da arte e Analista de arte - Fevereiro de 2001.
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